Houve um tempo meio ruim em Steubenville.
Começou na noite de quarta-feira, com a chuva que levou embora boa parte da velha neve. Quando acordei na quinta-feira ainda estava chovendo, e então ficou mais frio. A água levemente congelava à medida em que atingia qualquer superfície: a grama, as árvores, os carros, todos foram cristalizados como bolos. Foi belo, ainda que inconveniente. Após um tempo não ouvi precipitação alguma, e pensei que houvesse parado, mas não havia.
Por um momento nevou. A neve era bela, limpa e branca sobre o gelo cinza enlameado nas calçadas e estradas. Depois houve gelo, gelo em toda a parte, tec-tec-tec nos vidros das janelas, tic-tic-tic no teto do alpendre. E o sol se pôs, e o gelo aumentou.
As luzes começaram a tremeluzir; eu me acanhei. Nosso novo forno é à gás, mas o termostato é elétrico e o fogão também o é. Ficaríamos sem ambos caso a energia fosse embora.
Gente que era criança na Renovação Carismática não se sai bem em situações como essa. Minha família era atormentada pela crença de que desastres naturais eram punições de Deus, o que levava a alguns acontecimentos cômicos. Além disto, minha infância foi assombrada por profecias de cataclismos que destruiriam o mundo tal como o conhecíamos, satisfazendo a fúria de Deus e dando a justa punição a todos os pagãos egoístas. O pior dos cataclismos era chamado “os Três Dias de Trevas”. Os carismáticos apreciavam pensar nos Três Dias de Trevas. Pensavam que se iniciaria a qualquer hora. Houve uma carta que circulou em nossos grupos, escrita por um místico qualquer, que dizia que Deus estava prestes a eclipsar o sol por três dias de caos sem precedentes e horror para punir os pecadores. Não haveria luz natural. A eletricidade e mesmo o fogo cessariam de funcionar, exceto por velas de cera de abelha abençoadas convenientemente disponíveis para venda. Demônios vagueariam pelas ruas semeando a destruição. As pessoas morreriam de medo, se os demônios não as pegassem antes. Quando esses três dias chegassem, todos nós teríamos de nos trancar em casa. Não deveríamos olhar pela janela por motivo algum. Não deveríamos ver quem estaria à porta, mesmo se soasse como se nossos familiares e entes queridos estivessem lá fora gritando por piedade, implorando para entrar, porque de fato realmente seriam os demônios no lado de fora. Se nós os deixássemos entrar, eles nos matariam. Após os Três Dias de Trevas, viria um Castigo que, de algum modo, seria pior. Após um Castigo, o triunfo do Imaculado Coração e o início de uma “era de paz”. Mas quem, exatamente, sobreviveria os Três Dias de Trevas era meio que uma questão em aberto.
As pessoas com as quais cresci acreditavam nesse tipo de coisa. Elas realmente acreditavam. E a contavam aos seus filhos, ou falavam dela em frente a eles, e nós escutávamos. Nós a absorvíamos por inteiro, como as crianças fazem.
Eu ainda tenho medo dos Três Dias de Trevas.
Na internet, as notícias se acumulavam relato após relato de interrupção de eletricidade ao redor da área dos três estados[1]. Vi vídeos de transformadores explodindo em Ohio, na Pensilvânia, na Virgínia Ocidental. Incêndios nos fios de energia caídos levantavam colunas de fumaça. O xerife expediu uma emergência de nível um e depois uma de nível dois; por fim, uma de nível três, a mais severa. Todas as estradas foram fechadas, exceto para veículos de emergência.
Quando olhei pela janela de trás, nosso arbusto lilás estava dobrado como um salgueiro-chorão, todo cristalino e liso com gelo. E assim ele veio abaixo.
Os blecautes continuaram. Dez por cento dos lares estavam sem energia no condado de Washington, na Pensilvânia. Quase cinquenta por cento das casas estavam sem eletricidade no condado de Hancock, Virgínia Ocidental, do outro lado do rio[2]. Entre trinta e sessenta por cento das residências ficaram sem energia em todo o chaminé da Virgínia Ocidental[3]. O Centro Médico de Weirton estava funcionando somente com geradores.
Entre vinte e trinta por cento estava sem energia bem aqui, no condado de Jefferson.
Vi que as luzes estavam se apagando perto da faculdade comunitária e já tinham se apagado perto do Trinity Hospital. Elas foram embora em Brady Estates, a apenas uma milha de distância.
Parecia ser só questão de tempo até que nossa rua seguisse o exemplo. Eu me perguntei se tínhamos velas em casa, e se elas eram feitas de cera de abelha.
Minha família ficou relativamente calma apesar dos Três Dias de Trevas, no fim das contas. Nós tínhamos lido a profecia. Não penso que achámos que não era verdade. Não lembro de uma única profecia, em todos os meus dias de Renovação Carismática, que não tenhamos saído e declarado que não era verdadeira. Fazer isto poderia ser considerado Blasfêmia do Espírito. Acreditávamos em tudo. Minha mãe expressou a opinião de que o caos pudesse ser desencadeado por um “acidente nuclear”. Estava morta de medo, mas não falei nada a respeito. Outros ficaram bem mais animados. Desde que deixei a Renovação Carismática encontrei pessoas que cresceram sem quaisquer planos para o futuro, pois não esperavam viver até a idade adulta. Pensavam que os Três Dias de Trevas destruiriam tudo, e que precisaríamos nos trancar em casa e não ver quem estivesse à porta mesmo se nossas famílias e nossos entes queridos batessem e gritassem por socorro.
Essa era a pior parte para mim: a ideia de que pessoas que amava gritassem. Talvez fosse meu avô, um católico relapso. Talvez fosse minha melhor amiga Julia, que assistia a programas de televisão aos quais eu era proibida de assistir. Quem sabe não fossem meus maus primos que minha mãe dizia ser “mundanos demais” ou meu divertido tio protestante que nos levava para a natação. Esses eram o tipo de gente que poderia ser ímpia o suficiente para ignorar uma profecia e sair durante os Três Dias de Trevas, e então eles ficariam presos com os demônios. E eu não saberia se eram realmente eles ou um demônio a se fazer passar por eles. Eu teria de obedecer à Virgem Maria, ficar em casa e deixá-los sofrer de forma imprevidente.
Na minha casa, o wi-fi se extinguiu silenciosamente, mas as luzes continuaram acesas. Conferi meu telefone atrás de notícias atualizadas, já que não pude continuar a atualizar a página no meu computador. Entrei em contato com o grupo Buy Nothing[1], onde as pessoas vão pedir ajuda caso precisem emprestar um cortador de grama ou que alguém os traga artigos de mercearia para o fim de semana, e onde outros vão oferecer roupas e mobiliário de que estão se livrando. Foi quando eu descobri o quão ruim isto estava: a energia tinha acabado em toda parte, com minha casa em uma pequena ilha abrigada. Talvez tenha sido porque LaBelle está tão próxima do campus, a cidade tem o cuidado de manter nossos fios novos. Talvez tenha sido porque há tão poucas árvores neste quarteirão. Talvez a casa fosse feita de cera abençoada. De algum modo, a energia continuou ligada.
Comecei a usar o aspirador e arrumar as coisas. Rasguei caixas em pedaços para jogar no lixo. Despedacei o lixo postal[2].
A chuva congelante caía com mais força e velocidade.
O problema de ter sido criada na Renovação Carismática e agora ser outra coisa é que rezar dói. Ainda sou praticante do catolicismo. Ainda estou convencida de que existe um Deus, e de que Ele escuta quando falamos. Mas as orações que a maioria dos católicos diz bruscamente sem pensar quando estão com medo e querem sentir a presença desse Deus me fazem entrar em pânico. Detesto o Rosário, por exemplo, porque me faz pensar em aparições marianas, profecias, místicos tendo visões de cataclismos - esses terríveis Três Dias de Trevas.
Comecei a murmurar uma oração de São Patrício.
Imponho a mim mesmo hoje as virtudes do estrelado Paraíso,
a via vivificante do glorioso sol,
a alvura da lua ao anoitecer,
o clarão do relâmpago livre,
os choques tormentosos do turbilhonante vento,
a terra firme, o mar salgado e profundo
Detesto pensar em gente sofrendo.
Não quero que as pessoas sofram.
Eu prefiro impedir as pessoas de sofrer do que estar a salvo.
Eu prefiro impedir as pessoas de sofrer do que estar certa.
Eu prefiro impedir as pessoas de sofrer do que obedecer à Virgem Maria. Prefiro abrir a porta caso seja um parente ou amigo meu, alguém que eu amo e que possa ajudar, mesmo que isso signifique ser morta por um demônio. Prefiro ter compaixão e aceitar as consequências do que me trancar em casa e escutar um outro alguém gritar. Mesmo se eu nunca fosse viver para ver a Era de Paz.
Pensei por um minuto e voltei a pegar meu telefone. Fui ao grupo Buy Nothing. Escrevi a todos os meus vizinhos: “Sei que é perigoso dirigir neste momento. Mas se limparem pela manhã e alguém precisar carregar o celular ou coisa assim, ainda tem energia em casa. Vamos olhar um pelo outro.” E dei meu endereço, e coloquei um pouco de sopa de frango no crockpot[1] para cozinhar lentamente a noite inteira, para que eu tivesse algo para ajudar as pessoas a se aquecerem. E então fui para a cama.
De manhã estava sossegado, calmo, tão brilhante como uma manhã de fevereiro pode ser quando o sol está quase irrompendo por um brilho de nuvem branca. Desci as escadas para abrir a porta a quaisquer amigos ou estranhos ou demônios que aparecessem querendo sopa quente. E não tive medo algum.
Talvez a verdadeira Era de Paz seja algo que acontece por dentro.
[1] Um tipo de panela elétrica para cozinhar lentamente
os alimentos. Crockpot é o nome de uma marca sob a qual se vendem esses tipos
de panela.
[1] Algo como “compre nada”.
[2] Cartas que costumam promover produtos e serviços que
o destinatário não pediu.
[1] Várias áreas metropolitanas nos Estados Unidos se
espalham por mais de um estado. Neste caso, Steubenville, que é sede do condado
de Jefferson, em Ohio, fica na área metropolitana do Vale do Ohio Superior, com
cidades em Ohio e na Virgínia Ocidental, perto da região metropolitana de
Pittsburgh. Faz parte da área de estatística combinada de Pittsburgh–New
Castle–Weirton, que engloba cidades de Ohio, da Virgínia Ocidental e da Pensilvânia.
[2] O rio Ohio, que passa por Pensilvânia, Ohio, Virgínia
Ocidental, Kentucky, Indiana e Illinois.
[3] O Saliente Norte da Virgínia Ocidental, próximo de
Steubenville, cuja maior cidade é Wheeling.